Filosofia do chão: experiências e criações de professores em direitos humanos
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Descrição
Este é um livro que nos encontra em uma boa hora. Não porque vivamos um bom momento, mas porque ele nos convida a pensar, de outros modos, nestes fenômenos que nos rondam, no presente, de modos empobrecedores e despotencializadores da vida, do pensar e do conhecer. Tempos nos quais os Direitos Humanos, a Educação, as infâncias, as juventudes e a própria criação estão sob incisivos ataques de um conjunto de ideias obscuras e seus reprodutores. É comum dizer, nestes tempos, que estamos sem chão para pensar, para lutar, para querer mudar. Esses tempos sombrios nos entristecem e, não raro, costuma nos deixar sem muita disposição existencial para mobilizar mudanças, para inventar, para criar.
Pouco temos podido criar nesses tempos que atravessamos. Nesse período se tem tentado, a todo custo, fazer com que nossas crianças e adolescentes sejam repetidores de um mundo cada vez mais triste, mais negativamente regrado, mais violento. Nas penumbras em que vivemos, a tristeza, a desmotivação são empecilhos para a mobilização de espaços nos quais a criação e a invenção seja possível. E não sem mais. É uma das maneiras de colonizar nossas crianças e jovens.
Ao mesmo tempo, se busca desinvestir de potência a experiência educativa. Empobrecê-la, colocando-a a serviço de mentalidades reacionárias, de valores cerceadores e militantes. Nesse contexto, a vigilância normalizadora, a punição, são companheiros de trabalho de professoras e professores. A escola sendo atacada em sua missão política – e acusada de doutrinação ideológica. Os currículos, esvaziados, assistem concorrer o que a ciência e a história da cultura nos legaram com revisionismos e ideias abstrusas sem amparo na realidade partilhada de nossas sociedades.
Neste período turbulento, discursos que, supostamente, partindo da democracia, fazem com que a educação e a política arvorem-se num suposto levante antidemocrático, em uma estranha “defesa” das liberdades individuais, resultam apenas em dispersão de forças adoecidas e adoecedoras no espaço do político e na própria política, enquanto experiência de encontro e disputa pelos projetos diversos de futuro. Talvez nunca tenhamos visto antes tantos discursos pretensamente democráticos serem mobilizados com tanta intensidade contra os direitos, sobretudo os direitos humanos fundamentais.
É um tempo em que a ciência – inclusive a ciência da educação – está sob rigoroso ataque de negacionismos, revisionismos e obscurantismos de toda ordem. Muitas e muitos de nós, que até pouco tempo atrás estávamos nas fileiras da crítica de um cientificismo que instrumentalizava a vida, estamos agora na defesa da ciência contra os obscurantismos que sequestraram o campo da disputa da verdade e das potências do viver. Se antes precisávamos proteger a diferença de um cientificismo objetificante, hoje precisamos proteger a diversidade do campo de uma mortificação que sequestra a verdade do campo das disputas plurais, buscando manter um lugar protegido para as ciências como uma voz séria a ser ouvida. Quando os afetos distópicos promovidos e alimentados pelo WhatsApp ocupam um lugar privilegiado no campo da afirmação da certeza, o problemático – mas ainda aberto à crítica – campo da racionalidade científica moderna precisa ser defendido com argumentos, unhas e dentes. Há muito tempo não víamos tantos ismos a serviço da captura da capacidade de criar e da restrição de direitos.
E é exatamente nesse tempo que precisamos retomar a educação em direitos humanos, sobretudo orientando-a para o contexto de uma educação desde e para os direitos humanos. E não se trata aqui, apenas, de uma multiplicação de preposições. Trata-se de um compromisso com os direitos humanos do início ao fim da tarefa educativa, de disputar o próprio campo educacional que está no meio de uma zona de fogo entre discursos obscurantistas, reacionários e negacionistas. E, precisamente por isso, trata-se de não disputar apenas a educação em direitos humanos, mas a própria educação.
Essa disputa pela educação não aparece apenas no campo do que fazer no campo educativo. Trata-se também, e talvez sobretudo, no campo do como fazer. E é aqui que mora o totalmente inovador do trabalho que leremos. Ao trazer o fazer sociopoético para uma pesquisa interventiva em educação para os direitos humanos, a autora nos conduz a uma jornada que só pode acontecer no coletivo, no plural, no comunitário. Ela nos convida a nos juntarmos ao coletivo da pesquisa, juntamente com as co-pesquisadoras, para nos afetarmos e expressarmos esse afeto no que fazemos e pensamos. E, nesse contexto, colocarmos um pensamento educativo comprometido com os direitos humanos tanto como ponto de partida, quanto como ponto de chegada, informados por uma filosofia produzida no chão da escola.
O fazer sociopoético, tal como trazido pelo livro, articula o pensamento crítico e criativo, a ação política, a responsabilidade ética e o engajamento estético no fazer e no pesquisar educativo. E, exatamente nesse ponto, é que tudo o que essa articulação de atividades humanas coloca em jogo é também revisado, criticado, repensado. Aliado a esse intricado jogo de pensar e fazer educativo, temos as margens da filosofia da diferença que, mais do que um arcabouço teórico, é também uma orientação do que se quer com a pesquisa e com a própria educação: a potencialização do encontro com a diferença, do singular, do múltiplo, do plural. É uma aposta em devires intensos. Devires plurais. Um devir que desarme as armadilhas do estático, do mesmo, do empobrecido de possibilidades.
Ao fazer essa movimentação o livro nos convida a nos engajarmos, coletivamente, em muitos encontros. Encontros com matizes teóricos e políticos diversos, construindo uma pluralidade de intenções, criativa, produtiva, potencializadora. E confetos vão pululando pelo texto nos conclamando a entrar na roda da criação de um caminho educativo em direitos humanos, que seja diferente por ser aberto à diferença, que é potencializador como a capulana instrumento africano pluripotente e policriativo que, sob a aparência de um bonito tecido – que veste e faz com que a mãe possa carregar consigo sua criança –, vincula, cuida, protege e faz caminhar junto.
Nessa jornada, mais do que apenas acompanhar o conjunto de reflexões e experiências de professoras da educação básica em seu processo de fortalecimento para a experiência educativa comprometida com os direitos humanos, a instigante abordagem de Socorro Borges nos apresenta a urgência de criar para educar em direitos humanos. É um convite a resistir criando e a criar resistindo em/a esses tempos sombrios que nos cercam.
Criar não a partir do nada, mas a partir das histórias que contaram sobre nós, a ponto de nos fortalecermos para podermos narrarmos nossas histórias, nossos desejos, nossos projetos de mundo e de futuro. Nesse caminhar, Socorro Borges convida as professoras para pensarem/pesquisarem junto com ela nessa empreitada difícil de repensar o que fazemos no contexto de engajamento da educação com os direitos humanos. E nessa trilha coletiva nos oferece um chão, para que, desde ele, possamos resistir a essa sensação nefasta que nos ronda, de impotência, de empobrecimento moral e cognitivo que cerca a sensação de que estamos sem chão para pensar e transformar o contexto em que vivemos.
Que este livro-convite, possa provocar em vocês, o que provocou em mim: um fascínio que inquieta e nos convoca a não ficarmos apáticos diante do tempo sombrio que nos cerca. Nos convida a criar, a agir, a dizer um outro chão para a educação em direitos humanos, assim como a criança-potência de Manoel de Barros e, dessa maneira, buscar outros espaços para que nossas outras crianças e jovens que estão nas escolas possam experimentar uma educação de mãos dadas, rumo a outras sensibilidades, outras possibilidades, outros devires.
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